O Amor Acontece



 

Parte I

Tal como todas as manhãs, acordei às 07h00 para ir trabalhar. Ensonada eu peguei o primeiro ônibus e meia-hora depois saí em um outro ponto onde eu teria de esperar por outro transporte. É, eu tinha de pegar dois transportes para chegar no meu trabalho... Compensava que eu adorava o que fazia, porque senão seria maior tédio.
Poucos minutos se passaram até que meu segundo transporte chegou.
Como sempre as minhas noites mal dormidas me faziam adormecer em pleno ônibus, mas eu assim o permitia porque a viagem ainda era um pouco longa e eu precisava de um descanso extra. Mas, por qualquer motivo, nesse dia eu não estava conseguindo relaxar por completo e me dar ao prazer de dormir mais alguns minutos, por mais escassos e insignificantes que eles fossem.
Inconformada peguei em meu MP4 e coloquei os fones nos ouvidos deixando que a música me fizesse companhia pelo resto da viagem. Os sons me eram indistintos naquele momento matutino, mas me deixavam mais relaxada.
Encostei minha cabeça na janela e foquei meu olhar na paisagem desconexa, deixando minha mente vagueando no vazio.
Não sei por quanto tempo fiquei absorta, ou quantas músicas tocaram sem que eu realmente as tivesse escutado, até que uma mão tocou meu ombro me fazendo dar um pulo no banco, sobressaltada com o inesperado contato. Tirei de imediato os fones dos ouvidos e foquei meu olhar no parceiro de banco que me tirara do meu momento de pura brisa.

-Radiohead? - O rapaz perguntou e eu franzi a testa, completamente alienada com a pergunta. - A música que está escutando. - Apontou para os fones em minhas mãos e eu olhei para os mesmo como uma retardada, ainda sem ter processado por completo a conexão entre a pergunta e os fones.

-Aah, sim, a música! - Exclamei estupidamente. - Na verdade... nem sei que música está tocando. Estava distraída. - Expliquei me sentindo um pouco envergonhada com a situação. O que ele iria pensar de mim, que fumo droga? Que sou doente mental?

Mas o rapaz não me olhou como se eu fosse uma aberração, pelo contrário, ele riu. E, man, que sorriso! Quase perdi o ar quando ele abriu aquela boca para mostrar seus dentes. E que dentes tão imaculados, alinhados e perfeitos. Que lábios tão cheios e avermelhados.
Subi o olhar, meio hipnotizada e disposta a olhar com maior atenção a pessoa que estava tentando manter uma conversa comigo. Por onde eu deveria começar? Por seus olhos negros como uma noite sombria, mas iluminados como uma lua cheia? Que braços eram aqueles, tão inchados, apertados por uma camisa tão justa que a qualquer movimento em falso parecia que iria se rasgar em pedaços? E os peitorais, quase tão grandes quantos os meus...Dava para amassar pão sobre eles. E as perna...quando é que elas terminavam? Deus, aquelas coxas não podia ser mais grossas, senão eu acharia que ele escondia um pernil em cada perna.
O rapaz pigarreou, chamando a minha atenção e eu sorri constrangida, focando de novo em seu rosto, que se contorcia em uma gargalhada contida. Corei abrutamente.
Ok, , você chegou no fundo do poço do ridículo, você é a rainha do King Kong do milénio, definitivamente!

-Desculpe. - Pedi envergonhada.

-Eu estava perguntando se podia escutar música com você. É que eu esqueci de carregar o meu Ipode ontem à noite e agora eu não tenho com que me entreter. - Ok, judia do pobre, vai, exibe seu Ipode maravilhosamente caro e que alberga umas 973982163912634916 músicas a mais do que meu simples MP4, com suas 198 músicas, porque sim, ele tinha de ser mesquinho e não me deixar colocar 200, né? - E visto que você tem um gosto musical semelhante ao meu... - Duvido! O dele deve de ser bem melhor que minhas músicas meloso-depressivas.

Mesmo assim ele interpretou meu silêncio como um sim e pegou um dos fones enquanto eu observava atentamente sua reação ao meu péssimo (e suicida) gosto musical.
Suspirei de alívio quando ele começou abanando a perna e estalando os dedos ao som da música que estava tocando. Por sorte deveria de ser uma das raras músicas que tinha alguma qualidade e fugiam do padrão meloso-depressivo.
Coloquei o outro fone no meu ouvido e meu coração ameaçou parar em um ataque cardíaco quando o som fluiu pelo meu tímpano e chegou ao centro de reconhecimento do meu cérebro.
Porque raios eu tinha de ter uma playlist tão...feminina?
Não era como se eu contasse compartilhar meu MP4 com um completo estranho que, diga-se de passagem, estava curtindo ao som de All the Single Ladies da Beyoncé. Pior, ele estava fazendo playback! Pior, sua voz estava começando a ganhar vida!!

-"All the single ladies, all the single ladies (x2) Oh, oh oh oh (x3) Now put your hands up". - Ele cantava de acordo com mais um dos tantos refrões que a música repetia, de forma nada discreta, fazendo o ônibus inteiro – mesmo que quase vazio – rir acesamente da sua figura cômica imitando a coreografia do videoclipe.

Mesmo com uma vontade tremenda de rir, me coloquei na situação dele e fiz o que achava certo. Então comecei cantando e dançando como ele. Sim, eu sei. Era de se esperar que eu chamasse a sua atenção ou que desse pause na música, mas não foi isso que meu cérebro me comandou.
Só então ele se deu conta do papelão que estava fazendo e, sem interromper, me olhou admirado e agradecido pelo apoio. Eu olhei com mais intensidade, apreciando aquele momento único, como nos filmes lamechas em que o cenário onde os apaixonados se encontram desvanece, dando lugar a um wallpaper cor-de-rosa com estrelinhas e coraçõezinhos caindo e tudo isso em câmera lenta. Mas, para cumprimentar a minha falta de sorte – porque eu nunca usa a outra palavra começada por -a – ele olhou em frente e se levantou de supetão, tocando o sinal de paragem e se encaminhando até a porta de saída, aguardando a paragem do ônibus no ponto que se seguia.
Antes de sair ele sorriu para mim de forma tímida e acenou em despedida.
Fiquei vendo-o partir sem reparar onde ele estava descendo. Sequer sabia onde estava passando, porque, nas outras vezes, não dava para gravar todas as paragens pois eu sempre adormecia pela viagem inteira.
Quando o ônibus virou uma rua e eu deixei de o ver, suspirei pesadamente fechando os olhos e mantendo em mente a sua imagem, esperando que ela não desaparecesse tão rápido quanto eu lamentava.